| Contenido | Contáctenos |Suscripciones | Paute en piedepágina 
Revista de Libros
 
No. 12  l  Agosto 2007


Foto: Paulo Gurevitz

Adriana Lisboa / Página personal

Libros
Os fios da memória (Rocco, 1999)
Sinfonia em Branco (Rocco, 2001)
Um beijo de colombina (Rocco, 2003)
Caligrafías (Rocco, 2005)
Lingua de trapo (Rocco, 2005)
Rakushisha (Rocco, 2007)
Reseñas:
Por Ondjaki (Nova Cultura)

Textos en internet:
Blog de Paris (Proyecto Amores Expressos)

A propósito de Rakushisha, a Cabana dos Caquis Caídos

Por Adriana Lisboa

“Mala como livro e livro como bagagem. Porque a vida é algo que se leva às costas, com custo, ou sobre as mãos, com delicadeza.” –Ondjaki

Não chove em Arashiyama, nos arredores da cidade de Kyoto. Bicicletas passam e um campo de arroz enfileira seu verde sob o sol. Poucas pessoas. Procura-se uma placa com três ideogramas: Rakushisha. A Cabana dos Caquis Caídos, que hospedou o poeta Matsuo Basho há mais de trezentos anos.

No Japão, a moça brasileira que veio do outro lado do planeta busca inventar memórias para o livro que pretende escrever. O livro que pretende que se escreva. Arashiyama, nos arredores da cidade de Kyoto, é silêncio e solidão. Mas é um infinito compartilhado de delicadezas.

O livro vai levar o título de Rakushisha. Ou talvez se chame A Cabana dos Caquis Caídos. Já teve três ou quatro versões iniciais ao longo de três anos. Mas então a moça brasileira achou que precisava atravessar o planeta e estar com os pés e o coração ali, naquele lugar, naquela cidade, naquela língua que estudou, com esse propósito, durante os três anos, mas que pouco entende mesmo assim.

Atravessar o planeta era caro. Um sonho que se arma no Rio de Janeiro e se espraia em Kyoto é caro. Ela então pediu a tal bolsa. Desconfiada. Cética e esperançosa. E lhe deram a tal bolsa. Numa tarde de maio, romaria pelas casas de saúde do Rio de Janeiro: exames disso, daquilo, de vista, de pulmão, audiometria. Exigências para obter o visto –categoria B: atividades culturais.

E no início do verão, com medo da estação das chuvas, chamada tsuyu, a moça brasileira colocou tênis impermeáveis nos pés e os pés confusos no aeroporto de Osaka. Sentia-se como que se repersonalizando. Largando alguma pele morta a fim de adquirir outra. A fim de merecer olhos para olhar Kyoto e o poeta Matsuo Basho e a Cabana dos Caquis Caídos e fazer disso tudo um livro de ficção. Este o sonho, o projeto.

Rakushisha, o romance: um desenhista brasileiro, Haruki, ilustrador de livros, recebe o convite de ilustrar uma tradução de um dos diários de Basho. O diário se chama Saga Nikki, ou Diário de Saga, e foi escrito quando Basho se hospedou com seu discípulo Kyorai, no ano de 1691.

Diz a lenda que Kyorai tinha cerca de quarenta pés de caqui crescendo no jardim de sua cabana em Saga, subúrbio de Kyoto. Tinha acertado a venda dos frutos, certo outono em que as árvores estavam carregadas, mas na véspera do dia em que deveria entregá-los uma forte tempestade caiu, à noite. Não sobrou um único caqui. Desse dia em diante Kyorai passou a chamar sua casa de Rakushisha, a Cabana dos Caquis Caídos.

Ao romance: Haruki, desenhista brasileiro, neto de japoneses, que pouco sabe do Japão, recebe o convite de ilustrar o Diário de Saga. No Rio de Janeiro, pouco antes de viajar, conhece Celina –que, coerente com esse nome, parece mesmo alguma coisa volátil a Haruki. Talvez por dentro ela não tenha ossos nem músculos nem vísceras, mas ar. Um pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana. Um pedaço de céu quase humano.

Juntos os dois partem para um Japão que é indagação, enigma, mistério, sonho, fantasia, esquecimento, conhecimento, reconhecimento, recordação, pacificação. No país do sol nascente, estranho para ambos, Haruki e Celina recuperam pistas de seu passado, que a memória tentava sem grande sucesso disfarçar.

Mas o reencontro com o passado, com os passados, não pode ser trágico: deve ser quase silencioso, como um haikai, deve ser espontâneo como um traço de caligrafia, a palavra justa, o gesto preciso, o movimento bastante, não mais, não menos. Deve conter aquela redoma de significado intocável, aquele sentido que não se diz, que apenas se intui, que se sugere no intervalo dos outros sentidos. “Qual o som de uma única mão batendo palmas?”, indaga um célebre koan zen-budista.

Haruki e Celina aprendem com a viagem. A verdade da viagem, de ter o chão passando debaixo dos pés, de perceber que o caminho equivale ao ponto de chegada. Celina se pergunta: e se for preciso assumir a fragilidade de nós mesmos na fragilidade daquilo que somos juntos? Viajantes?

Depois de voltar do Japão, personagens acompanhando-a pelas ruas, pelos céus onde voam leves os aviões, a moça brasileira escreve um livro que reune o poeta Basho, Haruki, Celina e seus passados.

O livro então viaja dentro da editora, nos computadores, na gráfica, ganha diagramação e capa. O livro, papel impresso, sai em viagem às vésperas do ano em que se comemora o centenário da imigração japonesa ao Brasil. Uma outra viagem.

Escreveu Basho:

Canta o cuco
entre os caules do bambu
noite enluarada.

Volver arriba


Todos los derechos reservados. | Imagen y texto © Revista piedepágina