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Revista de Libros
 
No. 12  l  Agosto 2007

João Paulo Cuenca / blog

Libros
Corpo presente (2003) Planeta
Reseñas

Fragmento de O dia Mastroianni
10:32

Por Joao Paulo Cuenca

–Quantos foram os minutos da sua vida em que você pode dizer que realmente aconteceu alguma coisa?
–Alô? Quem é?
–Acorda que é hoje!

Bateu o telefone e tentou imediatamente voltar a dormir, colando o lençol à cabeça como uma muçulmana de burca. O aparelho não demorou a tocar de novo e, depois do quinto toque, Tomás Anselmo desistiu.

–Hoje o quê?

Saiu do banho gelado e vestiu-se. Ganhou a rua, a essa hora com ar amarelado, e caminhou entre batalhões de anônimos. Desviou-se de valas abertas nas rugas das mãos estendidas, filas indígenas nas portas de onipresentes lotéricas, ciganos ululando pontos de macumba, fuzileiros navais em formação, freiras de sombrinha, caminhões paquidérmicos despejando garrafas e engarrafando cruzamentos. Depois do caminho de casebres empilhados (“caixas de fósforo com janelas”) e becos malcheirosos (“nós, o cancro do mundo!”), encontrou-me no bar da esquina.

O encontro de dois palitos de fósforo:

–Tira esse focinho da cara, Tomás. Começamos agora, incontinenti!
–Mas ainda não deu nem onze horas.
–Já? –Peço dois.

Esvaziamos os troféus dourados num gole enquanto o garçom, sem que precisemos pedir, desliza da bandeja para nossa mesa um par de sanduíches de abacaxi com filet mignon, como anuncia o cardápio.

Surge, em meu amigo, dulcérrima lembrança: nos barulhentos almoços dominicais da sua infância, entre colunas ascendentes de fumaça e cínicas conversações adultas, a criança que costumava ser Tomás Anselmo mordia as bordas de plástico azul costuradas no menu deste preciso bar até a desintegração total, para irritação dos garçons e vergonha da mãe, que sempre lhe castigava com um tapa agudo sobre as costas da mão. E talvez seja aquele o mesmo cardápio semi-destruído que agora tem sob o copo, o que faz Tomás pensar secretamente em cravar os dentes no menu.

“Sou um cavalo usando espelhos retrovisores como antolhos!”

Mas olha para mim e, num invisível encolher de ombros, desiste. Esvazia um paliteiro e, com os palitos quebrados, forma desenhos geométricos sobre a toalha da mesa.

“Arranho o nosso epitáfio
Com palitos na mesa do bar
O bueiro sorve outro dia
Escorrendo a vida do popular
As ruas sem pressa amanhecem
Enquanto canto essa canção
Ao meu amor ...
Seja lá quem ele for”

É a letra do tango obscuro gravado em 1932 por Antônio Ratón que Tomás tenta cantarolar, sem saber onde e como acaba ou começa a estrofe.

“Como pode alguém pensar tanto no passado, sem ter passado nada?”

Anselmo, mergulhado em suposições tímidas e inúteis como essa, ganha uma expressão melancólica no arco das sobrancelhas depois de alguns goles. Encerrada a exploração mental sobre o cardápio e sua idílica infância de botequim, engatamos numa conversa sobre os amigos exilados com quem compartilhamos cadeiras, mesas e copos deste bar –e Tomás agora pensa que os copos das boas casas, assim como os cardápios, também devem seguir os mesmos ao longo dos anos, beijados por milhares de bocas!, algumas delas repetidas em estranhos padrões, representados por equações cujos gráficos seriam iguais aos desenhos traçados com palitos na mesa.

É manhã, e Tomás ainda introspectivo. Eu, bazófio, arroto escalas diatônicas, faço castelos neogóticos com as bolachas do chope, fanfarroneio sobre nossos ex-amigos:

–Ah, nossos sátiros camaradas de nada! Brindemos!

Brindemos aos dândis precoces, escritores sem livros, músicos sem discos, cineastas sem filmes com quem conversávamos por citações, flanando sob pontes e as mesas dos botecos como pândegos muito sólidos, lordes sem um tostão nos bolsos, trocando os dias pela noite e as noites por coisa alguma! Enredando fiapos de vida dedicadas ao culto do ócio, de nos mesmos e de paixões viróticas: nossa doce e irreparável adolescência.

–Aos que foram! Muitos tentaram a vida fora, exilando-se num exterior mitológico, dedicando-se à vera arte de lavar pratos ou trabalhar de babá, limpando com diplomas universitários de “humanas” os perfumados restos de criancinhas caucasóides de boa estirpe. A desistência do país, no início vista com inveja e deslumbre por todos, sempre era premiada por algum evento incerto que os obrigava a voltar: falta de dinheiro, acessos de pânico, envolvimento em pequenos crimes, mortes na família, ou, ainda, tornados e enchentes que destruíam as metrópoles de vidro para onde migravam –como se houvesse uma força misteriosa que os atraísse de volta à cidade perdida de si mesma, aos bares, mesas e cadeiras de todo mundo e de ninguém, aos copos e cardápios mordidos de sempre. Desembarcavam cabisbaixos, veteranos de uma guerra perdida.

A única guerra que poderiam combater.

Mas eu, Pedro Cassavas, jamais teria esse problema! Eu e Tomás Anselmo, periféricos eternos, à la resistance!

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